The Witness – Como a linguagem muda sua percepção do mundo?

The Witness é um jogo de puzzles em primeira pessoa criado por Jonathan Blow e sua equipe (sim, é o criador de Bried), lançado em 2016.

O jogo começa com você acordando em uma ilha da qual não sabe-se nada. O jogador precisa explorar a ilha e resolver puzzles aprendendo e observando a lógica daquele mundo, desde o ambiente até os problemas que foram resolvidos anteriormente.

O Gameplay e o aprendizado de uma linguagem

É importante o observar que The Witness ensina algo ao jogador explicitamente apenas no início. Sendo esse o primeiro e único momento de instrução, ou o famoso “tutorial”, para a principal mecânica de resolução dos puzzles. No restante do game, o jogador precisará aprender aos poucos como resolver os problemas.

O gameplay consiste, boa parte do tempo, em encontrar painéis espalhados pela ilha e resolvê-los, onde é necessário arrastar o cursor do mouse sobre um círculo até a parte final determinada.

Primeiro puzzle que o jogador deve resolve em The Witness

Os puzzles, como você deve imaginar, ficam mais e mais complexos com o tempo e apesar de não existir uma ordem correta para solucioná-los, alguns precisam ser finalizados para obter conhecimento o suficiente e então resolver outros mais elaborados, ou para que determinadas áreas da ilha sejam liberadas.

Exemplo de painéis com puzzles

Em alguns é importante ficar atento aos cenários, pois revelam informações de como podem ser feitos. Além disso, os cenários contam um pouco da história da ilha e do que pode ter ocorrido; também é comum algumas brincadeiras com a perspectiva ou com a luz e sombra.

O jogo de luz e sombra faz com que o homem pareça esta fazendo malabarismo com as pedras

E é aqui que chegamos no verdadeiro motivo pelo qual comecei escrever esse artigo, que não só é uma das melhores coisas de The Witness, como também é um dos motivos da existência do jogo.

Rotineiramente vejo o processo de aprendizagem do game sendo associado ao aprendizado de um novo idioma e como um estudo de uma nova língua, você vai absorvendo mais vocabulário e entendendo seus usos com a prática. The Witness usa isso a seu favor para o que muitos devem considerar o momento mais “mágico” do gameplay.

Em um dado momento, provavelmente você vai começar a enxergar os padrões apresentados pelo game no seu mundo. Como na imagem abaixo:

Padrão de puzzle de The Witness encontrado no cenário

Nem sempre esses padrões estão perfeitamente desenhados assim e em alguns você precisa encontrar a posição perfeita, a perspectiva ideal, para que funcione da maneira correta.

Então começamos não só ver esses padrões nos cenários do jogo, como também no mundo real; e é aí que quero chegar! Esses padrões sempre estivaram lá, porém, somente graças a The Witness você começa a vê-los.

Final de The Witness com um homem no mundo real encontrando os padrões do jogo

O azul sempre existiu?

Photo by Jeremy Bishop on Unsplash

Há alguns anos, quando comecei a estudar design, li um livro chamado Design para quem não é Deginer, do autor Robin Williams. Apesar de ser um livro bem antigo, ele é bastante recomendado para quem é novo no assunto, porém o fato que quero chamar a atenção é para uma pequena história que o autor conta logo de inicio. O autor conta em seu livro que, quando, criança recebeu um presente de natal; um livro com uma vasta variedade de plantas e árvores catalogadas. Enquanto folheava atentamente chamou a atenção de Williams uma planta de nome iuca, da qual tinha certeza de que nunca havia visto antes. Para sua surpresa, Williams percebeu que a planta estava em quase 80% das casas próximas.

O autor chamou esse efeito de Princípio da Iuca, o que basicamente diz que: “Quando damos um nome a algo, estamos conscientes deste algo.”.

William Ewart Gladstone (1839-1898), que por 12 anos foi o Primeiro-Ministro do Reino Unido e admirador da obra do poeta Homero, notou que nos relatos de A Ilíada e A Odisseia em momento algum faziam quaisquer referências à cor azul. O que nos leva mais tarde a Lazarus Geiger (1829-1870), que foi um filósofo e linguista alemão, que inspirado pela pesquisa de Gladstone, descobriu que o Alcorão, em antigas versões da bíblia em hebraico, nas sagas islandesas e em escrituras hindus, o fenômeno repetia-se.

Você pode estar se perguntando: ‘mas como as pessoas não viam o azul? afinal de contas, ele está em toda parte, correto?‘ Bem… não é exatamente assim. Guy Deutscher, também sendo um linguista que dedicou-se ao estudo da ausência de referências à cor azul em vários textos de civilizações antigas, fez uma pequena experiência com sua filha Alma. Primeiro certificou-se de que ela conseguia reconhecer a cor azul em objetos, mas que ninguém dissesse para a garota de que cor era o céu. Quando perguntou à Alma de que cor era céu, respondeu primeiro ‘branco’; apenas com um tempo depois de ver cartões-postais em que o céu era claramente azul, passou a descrevê-lo assim.


Indo além de The Witness

imagem do filme 1984 (1984)

Se você já leu 1984, o famoso livro de George Orwell, deve esta familiarizado com a ideia da novilíngua ou pelo menos com seu conceito dentro do livro. A novilíngua ou novafala, é um idioma criado pelo governo no livro com o objetivo de restringir o pensamento; em outras palavras: se a população não tivesse recursos no idioma para expressar-se, não poderia propagar ou criar ideias/pensamentos danosos ao governo.

imagem do filme A Chegada (2016)

Em A chegada, filme de 2016 dirigido por Dennis Villeneuve, após a chegada de alienígenas a terra, a linguista Dra. Louise Banks (Amy Adams) é chamada para estudar a língua dos visitantes. O idioma dos alienígenas porém, possui uma lógica completamente diferente das existentes na terra. Quando a Dra. Banks começa a entender melhor a língua, sua percepção do tempo é alterada.

E na vida real?

Membro da tribo Himbas participando do experiemento – fonte: businessinsider

Jules Davidoff, um psicólogo e Diretor do centro para cognição, computação e cultura da Universidade de Londres, realizou uma experiência com uma tribo africana que não possui uma palavra para a cor azul, mas possuem várias para diferentes tipos de verdes. O experimento mostrava quadrados de vários tons de verde. Os membros da tribo Himbas tiveram dificuldade de encontrar o quadrado de cor azul, mas conseguiam distinguir os tons de verde.

Outro exemplo interessante, de acordo com Deutsher, é uma tribo indígena da Australia, onde falam uma língua chamada Guugu Yimithirr. Eles não possuem palavras para esquerda e direita, mas independente das condições de visão, alguém que foi criado com o idioma, consegue identificar a direção do norte.

Comecei o texto dando uma breve sinopse de The Witness, tenho consciência que o game vai bem além de como descrevi, ele possui areas, vídeos e audios secretos espalhados pelo mapa, e apesar de ter dado alguns pequenos spoilers, acredito que ainda assim vale apena joga-lo.

Em algum momento da minha vida, já me pareceu meio exagerado termos palavras para quase tudo ou colocarmos tudo em algum tipo de categoria, bem, hoje esse tipo de pensamento soa apenas raso para mim, a final é interessante ver como o idioma falado pode impactar tanto na nossa percepção do mundo. Alguns dos povos citados no artigo possuem poucos falantes de suas línguas, e depois de tudo que acompanhamos é fácil entender como é importante preservar idiomas e culturas de diferentes povos, pois no final não perdemos apenas mais palavras diferentes.

Gostou desse tipo de texto? Eu espero trazer mais coisas assim, no entanto demanda tempo e pesquisa. Há algum tempo penso em escrever sobre esse assunto e trazer um pouco para o mundo dos vídeo games, para entendermos melhor como podemos usar esse tipo de conhecimento e assim criarmos experiências melhores. Além disso, deixei vários links espalhados pelo texto caso queira aprofundar-se no assunto.

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