O Homem Sol

Hoje ao chegar em casa, vi que Martha deixou alguns livros na varanda, dos quais passou a tarde inteira lendo.

Entre os livros encontrei um cartão da época em que namorávamos. Em seu verso escrito à mão dizia: “para o amor da minha vida, Helios”.

Surpresa!!!

Gritam as pessoas quando abri a porta. 

Outra vez Martha fez uma festa surpresa, ela sabe que não ligo para essas coisas, mas ela faz questão de lembrar deste dia.

Vocês me pegaram!

Falo com cara de assustado.

Não esperava por isso.

Na verdade ouvi cada pessoa nesta sala chegar enquanto ajudava alguns moradores do outro lado do país onde acabará de haver um terremoto. Consegui salvar todas as pessoas, apagar alguns incêndios e evitar acidentes maiores.

Meus pais estavam na festa, vizinhos e até colegas do trabalho.

Os últimos dias têm sido difíceis para todos. Martha está com medo e essa talvez seja a primeira vez que estou tão abalado.

Sempre que uso meus poderes, sinto que estou mais próximo do meu fim. Não sei se existe vida após a morte para mim, mas sei que vou sentir muita a falta dela.

Meus pais ainda não sabem, eles como Martha, certamente pedirão para que não use mais meus poderes. Contudo sou incapaz de fazer isso, ouço o coração de cada pessoa nessa sala bater assim como o meu, seus pulmões enchendo de oxigênio assim como os meus. Porém sou incapaz de sentir suas dores, sentir fome ou frio e no final, o mundo durante muito tempo para mim foi apenas um lugar feito de papel.

Mais tarde naquela noite eu estava cansado, ou algo assim. Algumas dessas coisas são novas para mim. 

Martha disse que amanhã poderíamos arrumar a casa, afinal hoje é meu aniversário.

Na calmaria da noite nada escapa de meus ouvidos, a muito tempo não preciso dormir, e ainda que tivesse necessidade, como poderia fechar meus olhos e ignorar todas as orações que parecem sussurrar em meus ouvidos? Por outro lado, Martha gosta de me ter por perto.

Não estou certo desse momento ser o presente como todos entendem, mas acredito que estou vivendo isso agora. Em algum momento, passado e futuro deixaram de existir para mim, agora tudo é presente. As lembranças de criança, meus primeiros passos, minha formatura no colegial, meus dias na faculdade e minha morte. Não sei se posso fazer muita coisa ou alguma coisa. As pessoas sempre fazem as mesmas coisas, eu sempre faço a mesma coisa. Nem sei dizer se é minha morte, só não consigo ver mais nada além disso.

Enfim, o brilho do sol entra pela janela. Apesar de uma parte grande das pessoas desse país ainda estar dormindo, outra precisava de ajuda. Infelizmente não estou mais autorizado a visitar vários países, e por tanto não ajudar outras pessoas. Não posso obrigá-las, o que me resta é respeitar a política de seus países. Ainda assim preciso levantar várias vezes durante a noite, afinal o resto do mundo ainda é muito grande. Entretanto as leis não são um isolante forte o bastante para impedir que o som de pedidos de ajuda cheguem aos meus ouvidos. Pessoas esperando que eu desça do céu e salve-as de qualquer que seja o perigo. O que posso fazer com isso? Será que elas sabem que eu estou ouvindo-as? E se soubessem que não posso ir, o que sentiriam?

Meu trabalho como professor de filosofia substituto é o suficiente para parecer que tenho um emprego e eventualmente dar aulas.

Hoje vou dar aula na mesma escola que a Martha leciona há mais de 5 anos. É estranho não ter vindo aqui em todo esse tempo. 

Ela me leva até a sala. Observo as crianças do segundo ano do ensino médio e facilmente abro um sorriso. Durante essa aula sobre ética um dos alunos pergunta se é ético que o homem-sol não ajude algumas pessoas mesmo podendo. O que respondo-lhe com outra pergunta é ético salvar alguém que não deseja ser salvo? Ele não respondeu. Eu já vivi esse momento algumas vezes e sempre espero que ele responda algo, mas a ausência de respostas permanece.

Sempre que possível, ao final do dia, vôo até a altura das nuvens, de lá consigo ver e observar todas as pessoas na cidade.

Talvez seja muita presunção minha tentar resolver os problemas do mundo, sei que não posso fazer isso, mas meus poderes são como uma benção grande demais para não dividi-los com a humanidade.

Não importa que meu rosto seja conhecido, apenas que meus atos inspirem outras pessoas, mesmo que por um breve momento, a dividirem seus dons com outros também.

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